Na noite da última terça-feira (24) o Presidente da República fez um pronunciamento em rede nacional de rádio, televisão e redes sociais sobre a pandemia do covide-19 no Brasil, provocando diversas reações nacionais e internacionais, tanto no meio médico-científico quanto político, com forte reação também nas instituições da sociedade civil organizada. Na contramão de todos os governos do mundo civilizado, do Comitê Olímpico Internacional, da Organização Mundial da Saúde, do seu próprio Ministério da Saúde, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, bem como de todos os secretários de saúde e governadores dos Estados da Federação, Bolsonaro minimizou o poder do vírus e a necessidade imperiosa do isolamento social.
– Ignorância, Loucura?
– Não, estratégia político-ideológica em estado bruto!
– Como assim?
– Explico:
Ao falar as impropriedades que falou, o presidente tinha como objetivo reaglutinar e reforçar a sua base de apoio mais fiel e reacionária, algo em torno de 15 a 20% dos eleitores que efetivamente acreditam nas teorias da conspiração da China comunista ou da imprensa esquerdista, bem como pensam e raciocinam sobre o atual momento sobrepondo a questão econômica à humanitária. O ar blasé anticiência, universidades e imprensa já foi a tônica da sua campanha eleitoral, atraindo uma parte da população que se alinha a essa interpretação do mundo. Somando a esse grupo outros simpatizantes fiéis do presidente em razão de temas como anti-petismo, belicismo e moralismo ufanista, chega-se a uma base de 25 a 30% de apoio popular, o que é suficiente para manter a polarização ideológica e dificultar bastante movimentos de impeachment. Além disso, mantidos esses patamares, Bolsonaro estará no segundo turno das eleições de 2022.
Em outra medida, o pronunciamento em rede nacional provocou a imediata reação dos presidentes do Senado e Câmara, algo desejado pela estratégia adotada, já que a finalidade é justamente colocar para a base a imagem de um lobo solitário lutando contra um Congresso Nacional corrupto e uma imprensa comunista. O Planalto tem em mãos pesquisas quantitativas e qualitativas que apontam a baixa aprovação do parlamento junto à opinião pública, o que faz dele um adversário bom de ser explorado e combatido no campo dos discursos ideológicos-manipuladores.
Contraditoriamente, Bolsonaro não dá sinais de que demitirá ou desautorizará na prática o Ministro da Saúde, que atua em posição diametralmente oposta ao discurso presidencial. A tática de sinais trocados do atual governo, cujo o intuito deliberado é confundir as pessoas no entendimento das questões propriamente políticas, mas mantê-las mobilizadas ao seu favor no âmbito do discurso moralista-ufanista e da pauta dos costumes, tem-se mostrado eficaz e, portanto, deve ser mantida, inclusive com a permanência do disparo de fake News. Sobre esse ponto é muito importante se atentar para o alerta que a premiadíssima jornalista do The New York Times, Michiko Kakutani, faz em seu excelente livro “A Morte da Verdade: Notas Sobre a Mentira na Era Trump” (Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2018), no sentido de que a relativização ilimitada da verdade, a substituição da ciência/acadêmica pelo “conhecimento da multidão”/senso comum, do jornalismo com editorial e verificação pelas fakes news de WhatsApp e redes sociais, a criminalização do conhecimento especializado e dos professores… nada disso acontece por acaso, tudo está guiado por projetos de dominação social, econômica e cultural muito mais amplos e bem estruturados e financiados.
Não é à toa que Bolsonaro, completamente refém na seara econômica de Paulo Guedes, um ultraliberal do mercado financeiro que comanda o Ministério da Economia no Brasil, busca sustentação do seu discurso nas falas do presidente norte-americano Donald Trump e de figuras controvertidas do cenário nacional, tais como Luciano Hang (o ‘véi da Havan’), do mega investidor reacionário Roberto Just, bem como de figuras públicas e midiáticas como Ratinho e Márcio Garcia. O erro de avaliação das esquerdas é acreditar que isso não tem ressonância na sociedade e que “Bolsonaro acabou”. Ledo engano: esse pensamento reacionário, ultraliberal, armamentista, anticientífico e radical-moralista encontra solo fértil em uma parte da opinião pública e mantem o presidente jogo político e eleitoral. A estratégia é de risco calculado: perde-se alguns apoiadores com a expectativa de consolidar a militância de outros.
Enfim, esse é o ponto focal de avaliação do momento e dos posicionamentos do líder político da Nação: Bolsonaro não está preocupado com as consequências sociais da crise, a pandemia é para ele apenas uma oportunidade de usar o discurso ideológico para mantê-lo vivo no xadrez político.
Muita gente boa, sem qualquer filiação a ideias fascistas, reacionárias ou golpistas votou em Bolsonaro por outros diversos motivos, seja porque acreditou honestamente que ele era uma alternativa viável ou por mero desencanto com a política. A realidade que se impõe as crenças tem mostrado a prevalência da dura verdade sobre o lirismo dos mitos. A quarentena é uma excelente oportunidade para, de casa, refletir sobre isso e ajudar a salvar o País, mantendo em isolamento o presidente.
Penso, logo existo.