O craft beer renaissance, movimento que defende o resgate das tradições da produção cervejeira, é o responsável pelo crescimento vertiginoso do número de microcervejarias no país. Em 2017, segundo registro do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o Brasil chegou a 610 cervejarias, 7% delas na região Nordeste. A produção de cervejas artesanais tem se popularizado inclusive em regiões com pouca tradição no mercado cervejeiro, como é o caso do Cariri cearense. Já é possível encontrar rótulos artesanais em alguns bares da região, inclusive os de fabricação local.
Mesmo enfrentando barreiras para competir com as grandes cervejarias, ao passo que a carga tributária de ambas é a mesma, e que o pequeno produtor, além de outras dificuldades, paga a mais na aquisição de matéria-prima em pouca quantidade, o que acaba elevando o preço final dos seus produtos e restringindo o seu mercado, a cultura da cervejaria artesanal resiste e luta para difundir o seu lema: Beba menos, beba melhor.
Cervejaria Delícia – Produção caseira com tecnologia


O médico Yuri Stuart, 39 anos, conheceu o universo das cervejas artesanais por influência do irmão, o ano era 2015. Antes dessa data, para ele só existiam as cervejas comuns. O estranhamento inicial logo se transformou em paixão e, mesmo não dispondo de espaço e equipamentos para começar a fabricar sua própria cerveja, ele aprofundou os estudos sobre o assunto. Em 2016, depois de mudar para uma casa maior, Yuri encontrou o espaço adequado para iniciar as suas atividades como cervejeiro.
Hoje ele fabrica uma média de 20 litros por brassagem, foram 17 no total. Os tipos são variados: Lager, Pilsen, APA, IPA, Stout. Fabricar cerveja em casa é quase uma alquimia, requer três processos básicos: mostura, fervura e fermentação. Os dois primeiros geralmente ocorrem no mesmo dia. Já a fermentação dura de uma a algumas semanas. Atualmente Yuri investiu em equipamentos mais modernos, o que facilitou muito a fabricação de suas cervejas.
Esse equipamento eu mudei pra ele ano no passado (foto), já fiz umas quatro ou cinco cervejas nele, também é de inox. Você inicialmente coloca os grãos aqui dentro, ele tem uma bomba que puxa a água por fora, do lado, você coloca um filtro e ele começa a jogar água aqui por dentro (…) depois que você termina a primeira etapa, você ergue o cesto de grãos e apoia ele aqui em cima. Você pega a água que já foi aquecida na temperatura de lavagem, faz a lavagem dos grãos para extrair mais açúcares. Nessa lavagem você consegue extrair quase 40% dos açúcares que você vai levar pra fermentação (…) Depois você simplesmente descarta isso aqui (grãos) e segue pra fervura (…)
Normalmente eu deixo tudo pronto, lavado, geralmente eu limpo no dia anterior. Eu deixo os maltes já moídos, já faço a moagem prévia dos maltes, e ai no dia eu já coloco a água, já começo a aquecer, coloco os maltes e depois a máquina faz tudo sozinha. Ela fica fazendo a recirculação sozinha. Eu não preciso ficar ligando e desligando fogareiro, ela controla automaticamente a temperatura, e eu venho tomar meu café da manhã, vou fazer outras coisas. Se eu começar de 07 horas, mais ou menos 11 horas eu termino.


Mesmo tendo equipamentos modernos, o que mais chama atenção na “fábrica” da Cervejaria Delícia é a plantação de lúpulo. A planta típica do hemisfério norte tem uma adaptação difícil ao clima brasileiro, pois precisa de baixas temperaturas e de um tempo de exposição à luz variado. O lúpulo é o responsável pelo amargor, sabor, aroma e também atua na conservação do líquido.
Para quem deseja ingressar no universo cervejeiro, Yuri acrescenta que, atualmente, a internet dispõe de bastante informação e material para iniciar os estudos. Além dos insumos, os equipamentos básicos para iniciar a fabricação de cervejas artesanais consiste de duas ou três panelas, termômetro, densímetro, baldes para maturação, um fogão industrial de 2 bocas e uma geladeira para armazenar as cervejas.
Cervejaria Kurato – Cerveja artesanal com apelo regional


A cervejaria Kurato carrega a história e a cultura do Cariri desde o seu nome, inspirado na história da cidade do Crato, até as belas ilustrações com apelo regional dos seus rótulos. Fundada pelos amigos Cássio Diniz, 36 anos, e Paulo Henrique, 33, inicialmente, começou sua produção com modestos 20 litros por brassagem apenas para consumo dos amigos ou para troca de rótulos, prática comum no mundo cervejeiro.
A gente começou a fazer isso aqui por paixão mesmo (…) quando a gente começou a pensar em produzir, eu já estudava em casa e Cássio também apreciava as cervejas especiais. A gente foi atrás, comprou os equipamentos pra produzir e passou quase um ano guardados, com medo de produzir (…) pegou um espaço pequeno lá em casa, e começou a produzir. Paulo Henrique
Há aproximadamente um ano, a Kurato levou suas cervejas para a Feira Cariri Criativo. A partir dai, elas começaram a cair nas graças do público e a cervejaria ganhou outras proporções. Atualmente são produzidos em média 100 litros por brassagem e cinco estilos de cerveja. Além da feira, a Kurato também vende seus produtos através das suas redes sociais e em alguns estabelecimentos locais.
Dificuldades
Apesar da boa aceitação do público, eles dizem enfrentar dificuldades para produzir a cerveja. Os insumos necessários à fabricação ainda não são encontrados na região, o que leva os produtores a adquirir tudo de fora, principalmente através de e-commerce.
“Na nossa região ainda não tem, então o jeito é recorrer para esses mercados, o que é ruim porque o preço do produto acaba elevando muito por conta do frete. Em Fortaleza e Recife tem, mas eles ainda não conseguem ter um preço tão convidativo quanto no Sul e Sudeste. A única coisa que nós usamos daqui para nossa cerveja é a água, que é de excelente qualidade, mas o restante vem tudo de fora, é uma das maiores dificuldade da gente.” Desabafa, Paulo Henrique.


“Tem as cervejas que são mais caras. Por exemplo, a carga de lúpulo de uma APA ou de uma IPA é muito elevada (…) a edição especial da nossa Mula Preta usa cumaru (planta típica da região amazônica) e nibs de cacau (feitos a partir dos grãos tostados, descascados e quebrados em pedaços menores), dois ingredientes que encarecem o valor da cerveja.” Acrescenta, Cássio.
Mesmo diante das dificuldades, os amigos fazem planos de expansão para a cervejaria. O próximo é registrar a Kurato no MAPA, caminho necessário para que tudo funcione conforme a lei e a cerveja possa ser comercializada em mais pontos da região.
O passo de todo pequeno é ser grande. Se você for atrás dessas cervejarias maiores, elas começam pequenas. Todo cervejeiro, o sonho dele é se regularizar. Infelizmente a gente sabe que hoje no Brasil é muito complicado de se registrar uma cervejaria, é muita burocracia e muito imposto. Paulo Henrique
As expectativas de Cássio e Paulo Henrique quanto ao mercado de cervejas artesanais no Cariri são positivas. “A gente criou um grupo aqui, chama-se PROCERVA Cariri, que já é uma iniciativa de uma associação de cervejeiros artesanais aqui na região. Eu acredito que aqui nos próximos sete meses vai se tornar um grande polo.” Destaca confiante, Cássio.
Cervejeiros Cariri – Do grupo de amigos à feira gastronômica


Em setembro de 2017 os amigos Alessandro Oliveira, 41 anos, e Elce Ribeiro, 43, criaram um grupo de WhatsApp para integrar os apreciadores locais de cervejas artesanais, nascia o grupo Cervejeiros Cariri que em poucos meses atingiu o número de 150 participantes. O rápido crescimento levou os amigos a criarem também um perfil nas redes sociais para ampliar o alcance das atividades do grupo, divulgar e fomentar a cultura cervejeira na região.
“Na verdade, já existia muita gente que gostava, mas faltava alguém para conectar. A ideia foi legal, foi tão boa que rapidinho a gente teve uma ampliação muito grande da quantidade de pessoas no grupo, o Instagram também cresceu muito rápido. No Instagram a gente começou a fazer postagens educativas com relação aos estilos de cerveja, as escolas cervejeiras (…)” revela, Alessandro.
Além de fomentar a cultura cervejeira, o grupo promove encontros físicos e até virtuais para compartilhar experiências.
A gente combina qual o estilo, aí naquele dia todo mundo vai e escolhe a cerveja naquele estilo, abre, tira as fotos, posta a experiência, fala o que achou da cerveja e a gente vai trocando informação.


A aceitação do grupo e a falta de opções de rótulos na região, seja nos bares ou supermercados, fez os amigos enxergarem uma lacuna no mercado e uma oportunidade para empreender. A partir dai, o grupo Cervejeiros Cariri passou também a comercializar as cervejas artesanais nas redes sociais e, posteriormente, na feira gastronômica O Rancho. A maioria dos rótulos são de cervejarias pernambucanas, a recifense Debron é o carro chefe atualmente.
Na feira, o público pode adquirir cerca de 25 estilos de cervejas, além de produtos que levam a marca dos Cervejeiros Cariri. E para quem ainda acha que as cervejas artesanais são caras, Alexandro justifica que o custo-benefício vale a pena, e o preço mais elevado deve-se a qualidade da matéria prima e ao cuidadoso processo de fabricação das cervejas artesanais.
Eu não tenho dúvida de que o mercado de cervejas veio para ficar, pois o gosto das pessoas está mudando. (…) Isso aqui é uma tendência, é um caminho sem volta e que só vai pra frente. Se você experimentar uma cerveja dessa aqui, você não quer tomar outra.