“L’État c’est moi”, ou, em bom português, “O Estado sou Eu”, é uma frase que teria sido dita pelo rei de França Luís XIV (1638-1715) e é muito conhecida no estudo da História e da Ciência Política por retratar muito bem aquilo que se convencionou chamar de absolutismo, básica e rapidamente em razão da centralização política de todo o poder na figura do soberano. Desnecessário dizer que esse modelo é o oposto da Democracia e do Republicanismo, já que todo o fenômeno sociopolítico se resume a vontade de um só – o Rei.
Pois bem, o atual presidente do Brasil, eleito pelo voto popular em 2018, não tem o apego mínimo necessário as ideias de Governo, República e Democracia, preocupando-se diuturnamente com o culto a personalidade (dele!), como tão bem fizeram figuras históricas como Hitler, Stalin, Mussolini e Pinochet, dentre outros. Evidente, também, que esse problema remonta à campanha eleitoral, por um motivo simples: nas democracias republicanas se vota em um programa de governo que será posto em prática por um grupo formado por um ou mais partidos sob a coordenação de um líder, que é o candidato propriamente dito.
Como o candidato Jair Bolsonaro não tinha grupo nem programa, nada apresentando de concreto durante a campanha a não ser frases de efeito contra a Ciência, a Política as Universidades e as Artes (todo aquilo que pode nos salvar agora…), mas, ainda assim, foi eleito, não se sente ocupante, mas dono do cargo de Presidente da República do Brasil.
Além disso, tão bem ao gosto daquilo que Maquiavel chamaria de “falta de perspicácia”, Bolsonaro se cerca de bajuladores que se limitam a aplaudir e defender tudo que ele fala. Figuras como os ministros da Educação e das Relações Exteriores, seus três filhos e o ideólogo do Planalto, o astrólogo e autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, dão forma e rosto ao governo tupiniquim de agora.
Nesse mar de insensatez, Luiz Henrique Mandetta, médico de formação e político muito bem assessorado, destoa do coreto e parece ser o democrata republicano que faltava ao Brasil nesse momento. Nenhuma dúvida de que, dada as atuais condições, LHM desenvolve um trabalho importante, mas isso, por si só, não o transforma naquilo que ele não é. Ele é um bom técnico com conhecimento científico para atuar nesse momento e nesse governo de negacionistas anti-cientistas e anti-universidades, só.
E quem é Mandetta?
LHM é filho de uma tradicional família de políticos de Campo Grande/MS, por onde foi deputado de 2011 a 2019, mas não se candidatou a reeleição em 2018 porque tinha fortíssimo receio de que não se elegeria mais. Foi executivo de um conhecido plano de saúde privado e goza da confiança desse setor, tanto que nas suas duas eleições foi financiado por empresas de saúde privada. No Congresso organizou um forte lobby contra o Programa Mais Médicos e, já ministro, avisou, ainda antes da crise do COVID-19, que pautaria um projeto de cobrança para atendimento no SUS (O sistema público, universal e gratuito de saúde é o principal concorrente dos planos privados).
Como nada disso está na mesa, as vistas de toda a população, principalmente da parcela que precisa do SUS e do Mais Médicos, Mandetta projetou-se na crise, com muita competência e com uma boa assessoria e media training, diga-se. Mérito dele e incompetência do presidente e sua trupe. Contudo, como o presidente enxerga-se em Luiz XIV (voltamos ao começo), não admite nenhuma concorrência ao seu brilho próprio e não tolera que nenhum dos seus subordinados seja mais cortejado que ele (a propósito, por anda Moro?).
Bem medido e bem pesado, o perrengue entre o presidente e Mandetta espelha os contornos da disputa entre as alas da direita conservadora e privatista X o olavismo miliciano que dividem o governo Bolsonaro. A oposição está numa sinuca de bico: o que defender nesse momento? Mandetta é sem dúvida o que há menos ruim no governo negacionista da Vivendas da Barra, mas isso não o torna um progressista defensor do Estado Social.
O seu time de apoio é Rodrigo Maia e Ronaldo Caiado (DEM), Simone Tebet (MDB), o seu tio e senador Nelson Trad Filho (PSD), bem como o setor privado da saúde. Há alguma possibilidade desse grupo caminhar com uma candidatura de centro-esquerda nas eleições de 22 (Ciro, Haddad, Camilo…), ou irão lançar o seu próprio representante? Esse cara pode ser o Mandetta? Já se fala em uma chapa Dória-Mandatta (Reedição da aliança PSDB/DEM), é possível?
Essas são perguntas que demandam tempo e visão sistêmica para serem respondidas. Por enquanto, basta lembrar que, para LHM ficar no cargo, foi preciso a intervenção da ala militar e dos presidentes da Câmara e do Senado (ambos do DEM), com o acordo de flexibilização do isolamento, mesmo sem termos chegado ao pico da pandemia no Brasil – o que sugere, pelo menos em um primeiro momento, que o apego de Mandetta ao cargo (e as enormes possibilidades políticas que ele está vendo nisso) rivalizam com a sua cantada e decantada responsabilidade médica e amor pela ciência.
Qui vivis videbunt!