Quando foi nomeada capitã do exército francês, na Guerra dos Cem Anos, Joana D’Arc tinha 16 anos. Três anos depois, aos 19, já amplamente conhecida e vitoriosa, seria queimada viva na fogueira da Santa Inquisição, acusada de feitiçaria por homens do alto escalão do exército, incomodados coma competência militar e sucesso da garota.
A política, entendida maquiavelicamente como a “ciência do poder”, repete no decorrer da história a estrutura patriarcal de ocupação dos espaços de mando no tecido social. Trocando em miúdos: a política, ou o poder, é coisa de homem adulto, heterossexual e branco. Mulheres, jovens, homossexuais e negros são sujeitos sobre os quais se exerce o poder, não operadores dele (Michel Foucault e o seu conceito de biopolítica pode auxiliar bastante nessa compreensão).
De outra banda, nas ditas democracias contemporâneas, fundadas na ideia de representação, os grupos de interesse devem ter representatividade nos espaços de poder para evitar a imposição de vontades desmedida de alguns sobre todos (o que restaria na configuração do conceito de aristocracia). Quanto mais plural, multiétnica e multicultural for determinada sociedade, maior a necessidade de ocupação proporcional dos postos políticos por representantes dos mais diversos grupos, sob pena de falseamento do sentido mesmo da democracia.
Em um teste rápido para averiguação da validade desses enunciados, percebe-se que na Região Metropolitana do Cariri, por exemplo, não há nenhuma prefeita mulher, nenhum prefeito negro ou homossexual. A mesma regra se observa nas câmaras de vereadores, com baixíssima participação desses grupos na distribuição das cadeiras do parlamento. Se a lente for ampliada e o objeto de análise for o perfil dos governadores, dos deputados ou senadores, a regra de sub-representação de jovens, mulheres, negros e homossexuais permanecerá estável, sugerindo de maneira regular a validade empírica do que se diz teoricamente.
É nesse ambiente que se dá a análise sobre o burburinho que se criou nas últimas semanas acerca da ativista ecológica sueca Greta Thunberg, eleita pela revista liberal americana Time como a personalidade do ano. Antes disso a “pirralha” já havia sido cogitada para o Nobel da Paz de 2019 e feito um discurso forte na abertura da Cúpula do Clima, na sede das Nações Unidas. O mundo passou a prestar atenção a uma mulher adolescente que falava de um tema muito sensível aos homens adultos que comandam a política mundial: a mudança climática provocada pela ação humana de destruição do meio ambiente. Greta passara a ocupar um espaço de poder na arena mundial – e isso incomoda.
O sucesso da menina do aquecimento global reflete simbolicamente a participação dos grupos com déficit de representatividade na arena política, sobretudo jovens e mulheres dando o seguinte recado: é possível! Isso não é pouca coisa. Apenas a título de exemplo, temos no Brasil dois casos emblemáticos de como o modelo patriarcal de dominação política é arraigado: o assassinato ainda não desvendado da vereadora negra, suburbana e homossexual Marielle Franco e o autoexílio do ativista gay e deputado estadual Jean Wyllys motivado por reiteradas ameaças de morte pós-extermínio da vereadora já citada.
Greta é, portanto, uma personagem perigosa. “Pirralha”, “criança”, “manipulada”, “autista”, são adjetivos repetidas vezes dirigidos a ela para desqualificar ou minimizar a importância do espaço político (e, portanto, de poder) que sua atitude alcançou. Simbolicamente a sua odisseia pode inspirar mais jovens, mais mulheres e mais gente de diversos grupos igualmente alijados do jogo do poder a erguerem as suas bandeiras e ir à luta.
Nos dias de hoje não é mais possível resolver o seu caso de insubordinação e atrevimento como se resolveu o de Joana D’Arc, mas há o recurso de fritar a sua imagem, credibilidade e história utilizando as ferramentas do mundo virtual.
Greta é um perigo para “Os Donos do Poder” (lembrando Raimundo Faoro), para a manutenção da dominação patriarcal que cria barreiras à participação efetiva da juventude, das mulheres, dos negros e dos gays na política. Greta é uma mistura simbólica explosiva. Há motivos para temê-la.
*Isaac Luna é advogado, cientista político, escritor e professor universitário.