Por Isaac Luna*
Bombando na Netflix, o longa-metragem do cineasta brasileiro Fernando Meirelles traz como enredo o diálogo entre os “Dois Papas” vivos da igreja católica, o intelectual alemão Joseph Ratzinger (Bento XVI) e o popular cardeal argentino Jorge Bergoglio (Francisco). Dois expoentes da mesma crença com visões distintas e até antagônicas sobre diversos temas que estão no centro da doutrina e da práxis religiosa dos católicos. Apesar disso, e talvez muito em razão disso, encontraram um caminho para a convergência, aparando as arestas e focando prioritariamente nos pontos de união em detrimento das divergências.
Independe da velha discussão sobre se é a vida que imita a arte, ou a arte que imita a vida, o fato é que o campo progressista da política brasileira encontra-se fragmentado e conduzido por caminhos divergentes pelos seus dois principais “cardeais”: Ciro Gomes e Lula da Silva, acenando mais para um racha do que para unidade.
Não se trata, no caso de PT e PDT, de uma mera aliança estratégica com fins eleitorais e de acomodação política de quadros para viabilizar a governabilidade, prática corrente e não vedada por lei nos ditos “presidencialismos de coalizão”. Os partidos dos trabalhistas e dos trabalhadores possuem convergência ideológica e programática no âmago das principais teses políticas, discursos e projetos de país.
Não há dúvida de que existem particularidades e de que possam divergir em pontos específicos, mas o fato é que, histórica e contemporaneamente, as duas agremiações comungam da mesma “fé” político-ideológica. Em sua coluna de dezembro na Revista Piauí, o cientista social, filosofo e professor da Unicamp, Marcos Nobre, chama a atenção para a lógica tripartida da disputa pelo poder no Brasil atual: 1. Bolsonaristas (ou antipetistas); 2. Lulistas (ou anti-bolsonaristas) e; 3. Nem-nem (grupo que não tem predisposição definida de votar ou não votar em nenhum candidato).
De acordo com a sua análise, os grupos 1 e 2 tendem a se manter estáveis até 2022, de modo que o que está realmente em disputa é o voto do grupo 3, sobretudo no segundo turno, já que um candidato que se posicione nessa faixa do eleitorado terá muita dificuldade de ter êxito eleitoral, fundamentalmente porque, além de não ter votos entre os eleitores dos dois outros grupos, enfrentará uma disputa acirrada nesse campo – Dória, Hulk e Ciro, por exemplo, são nomes que buscam construir as suas campanhas dentro desse eixo, furando a polarização e apresentando-se como uma terceira via, nem lulista, nem bolsonarista.
De todo modo, sustenta Nobre que, mantida a tendência da polarização, vencerá a disputa em 22 quem conquistar a maior parte dos eleitores nem-nem, voto esse “que não virá para uma candidatura de esquerda por gravidade. Por não ter para onde ir, como muita gente insiste em fantasiar”.
No livro “Sintomas mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira” (Autonomia Literária, 2019), fruto da sua tese de doutorado na Carleton University (Ottawa, Canadá), a socióloga Sabrina Fernandes alerta para a necessidade da retomada do debate progressistas e da articulação política nas bases, criando um campo de convergência em torno de ideias, já que a formalização do Aliança Pelo Brasil tende a aglutinar em torno do clã Bolsonaro os setores sociais ligados ao conservadorismo moralista, a elite rentista, o militarismo, as mentes teocráticas, dentre vários outros posicionamentos anti-esquerdistas existentes no seio social.
Para Sabrina a mais urgente tarefa da esquerda é sair da zona de conforto do campo dos discursos bem intencionados, pois “não basta afirmar incessantemente que a esquerda está com os trabalhadores. É necessário dar sentido a essa afirmação com a presença, o contato, o diálogo, a compreensão e a solidariedade.
”As eleições municipais desse ano serão um teste para a averiguação da capacidade de composição dos palanques para 2022, sendo que o desafio é, mesmo nos locais onde a unidade não seja possível, se evitar o fogo amigo e os discursos demasiado agressivos que inviabilizem a retomada do diálogo no curto espaço de tempo que separa o escrutínio municipal do nacional.
Enfim, uma “cisma” do campo progressista e dos atores políticos que sustentam o discurso da inclusão, da tolerância e da democracia é o maior trunfo do presidente Jair Bolsonaro para manter o seu protagonismo na arena ideológica brasileira. Ciro e Lula são dois democratas, PT e PDT são partidos comprometidos com as lutas sociais, o pluralismo político, a garantia de direitos para as parcelas mais vulneráveis da sociedade e a defesa das instituições que sustentam o Estado Democrático de Direito.
Não são, na essência, oponentes: estão politicamente mais próximos do que estavam Ratzinger e Bergólio e, fazendo uma analogia com o que bem disse o teólogo Leonardo Boff sobre os dois pontífices, “São diferentes e complementares”.
O adversário social, político e ideológico comum a ser derrotado é outro.
*Isaac Luna é advogado, cientista político, escritor e professor universitário.