A repercussão nas redes sociais da coluna da semana passada, que tratou do “Caso Cid Gomes” gerou nos leitores vários questionamentos acerca da provocação de que o evento foi apenas mais um a revelar uma crise democrática no Brasil. Pois bem, para dar continuidade ao debate e tentar responder os questionamentos sobre se vivemos ou não uma crise democrática, é preciso esclarecer uma questão que está na origem de tudo o mais que se desdobrará nas discussões: afinal, o que é democracia?
Como ponto de partida deve ficar claro que a democracia pode se revelar em vários modelos (liberal, social, cristã etc.), não sendo possível discutir cada um deles nesse espaço. Portanto, o que se colocará para reflexão são os pressupostos sobre os quais se ergue e se consolidada um regime democrático, em qualquer que seja a sua vertente social ou ideológica.
Os pensadores modernos, filhos do renascimento cultural, do racionalismo e do iluminismo legaram para a contemporaneidade uma vasta obra que sustenta teoricamente a ideia e o conceito de democracia que orienta os países acerca das suas organizações políticas e sociais. No coração do debate de onde emergiu o conceito de democracia moderna estão as ideias de liberdade, igualdade, participação política, divisão e controle do poder, garantia da integridade e da propriedade, bem como submissão e respeito as regras do jogo que, por sua vez, devem está claramente definidas em um documento de natureza jurídica e política que recebe o nome de Constituição.
A tripartição dos poderes do Estado, que devem ser constituídos e legitimados através do voto popular em eleições livres e periódicas, com regras claramente estabelecidas pela lei, definem formalmente a democracia moderna. Sem poderes harmônicos e independentes, eleições livres e periódicas e respeito as leis, não será possível falar de democracia.
De outra banda, sob uma perspectiva material a ideia de democracia apenas será real se os poderes constituídos forem capaz de efetivar os direitos e garantias previstos na Constituição através de políticas públicas que materializem o acesso a educação, saúde, moradia, vestimentas, emprego, cultura, lazer e a uma parte do produto das riquezas produzidas pelo conjunto da sociedade. Sem a garantia da dignidade da pessoa humana, também não é possível se falar em democracia.
Por fim, sob a perspectiva racional e civilizatória a democracia se caracteriza pela solução não violenta dos conflitos de interesses. O uso da força está restrito a última alternativa possível, quando nada mais puder ser feito para resolver o litígio entre grupos ou entre indivíduos. O método democrático é o diálogo, o debate e a judicialização, ou seja: ainda que não se resolva a questão amigavelmente, não é dado a ninguém o direito de fazer justiça com as próprias mãos, devendo o conflito ser levado ao Judiciário para que um juiz equidistante das partes dê fim a disputa, utilizando para isso a lei previamente estabelecida e conhecida de todos.
Feitas essas considerações, a tarefa agora volta-se para a realidade brasileira, com fartos exemplos de violações graves dos pressupostos acima descritos: a) Há entre nós contundentes ameaças a liberdade, com jornalistas e seus familiares ameaçados de morte em razão do exercício de suas atividades informativas; b) Do mesmo modo, há professores perseguidos e até demitidos por expressarem seus pontos de vistas contrários as ideias dos governantes do momento, bem como denúncias da existência de agentes do serviço secreto de inteligência infiltrados nas universidades; c) A igualdade perante a lei, que somente se concretiza pelo reconhecimento das diferenças étnicas, sociais e culturais que estão na base da formação do povo brasileiro tem sido fustigada pela perseguição a grupos e pessoas em razão das suas origens sociais, condição sexual ou de gênero, manifestações artísticas, culturais e religiosas; d) A existência de escritórios clandestinos de criação e divulgação em massa de notícias falsas tornam precária as ideias de forção da consciência e escolha livre dos representantes políticos por cidadãos bem informados.
De mais a mais, o método democrático não reconhece a validade de levantes armados protagonizados por pessoas encapuzadas nem a ação isolada de políticos com uso da força. Também não cabe no Estado Democrático de Direito a convocação de manifestações que atentem contra a própria estrutura da democracia, de modo que pedir o fechamento do Congresso Nacional e/ou do STF constitui um ataque ao fundamento da tripartição dos poderes, sobretudo se tal ataque parte do representante máximo de um dos poderes, nesse caso o executivo, implicando, inclusive, em crime de responsabilidade, se ainda forem validadas as regras do jogo definidos na Carta Magna do País (CF/88 – art. 85).
Derradeiramente, mas não menos importante: na democracia o governo é civil, cabendo as forças armadas a importe e insubstituível missão de garantir a defesa da soberania do Estado diante de ameaças externas. Essa é uma questão que já foi levantada por Jorge Zaverucha, Ph.D. em Ciência Política e professor da UFPE em seu livro intitulado “Frágil Democracia” (Civilização Brasileira, 2000), no qual sugere que a caserna nunca deixou de exercer influência nos governos, mesmo após a redemocratização. Contudo, até Temer, tal influência era indireta, exercida por pressão e não pela gestão direta da ‘res publica’. Aliais, você sabe quantos ministros ou agentes do primeiro escalão do atual governo são militares? Estamos efetivamente sob a gerência de um governo civil, como determina a constituição e como é pressuposto de reconhecimento de uma democracia?
Não esqueça: o governo bolivariano da Venezuela perdeu o status de democracia justamente pela sua sustentação militar e pela cooptação dos Legislativo e do Judiciário pelo Executivo!
Feitas as provocações e esboços de esclarecimento, deve-se agora, democraticamente, contestar-se os conceitos e os fatos, bem como responder-se as perguntas apresentadas no texto para que o debate cumpra a sua missão de formar, informar e contribuir para a consolidação de um ambiente livre, racional e submisso ao império das leis – em outras palavras: democrático.