sábado, 02 de novembro de 2024

Livro resgata memórias de crianças à época do golpe militar no Brasil

Será lançado na próxima semana, em Brasília e no Rio de Janeiro, o livro 1964 – Eu Era Criança e Vivi, da Caravana Grupo Editorial. A publicação traz pontos de vista inéditos sobre a ditadura civil e militar (1964-1985), por meio de relatos de pessoas que eram crianças e adolescentes à época da deposição do governo constitucional de João Goulart.

Os 19 depoimentos reunidos no livro mostram como foram percebidos os atos golpistas e as consequências imediatas e posteriores para as famílias de quem tinha de 6 a 14 anos. Há histórias corriqueiras do ambiente doméstico, como aquelas sobre as mães que estocaram alimentos e pais que mandavam deixar as luzes da casa totalmente apagadas.

Há episódios pitorescos como o lembrado no livro por Luiz Philippe Torelly, hoje arquiteto, cujo pai entrou sobressaltado em uma barbearia em Brasília para levá-lo embora, apesar de ainda não ter terminado o corte. “Havia começado o golpe militar de 1964. Próximo à nossa quadra, na 408 [Sul], havia uma Central Telefônica do DTUI – Departamento de Telefones Urbanos e Interurbanos. A central logo foi ocupada por blindados e ninhos de metralhadora, por seu caráter estratégico”, lembra Torelly no livro para explicar a tensão do pai.

“O livro também contém relatos de pessoas que sofreram os horrores da ditadura, ou que tiveram membros da família muito afetados e que passaram por muito sofrimento”, ressalta Rita Nardelli, uma das organizadoras da publicação.

A publicação traz depoimento da jornalista Mônica Maria Rebelo Velloso, sobre uma prima perseguida pela repressão e profundamente traumatizada. “Ela foi presa, perdeu o filho que esperava e mataram seu companheiro. Conseguiu se exilar, primeiro no Chile e depois na Suécia. Voltou com a anistia e totalmente desequilibrada. Depois de algumas tentativas, conseguiu tirar a própria vida numa de suas crises.”

Fogueira e salvamento de livros

Mais de um dos depoimentos publicados fala sobre o destino de livros que poderiam ser considerados “subversivos”. Há histórias de quem queimou os próprios livros para não ser taxado de comunista, em eventual revista domiciliar da polícia ou do Exército, e de quem despistou militares para salvar as obras.

“Não me lembro exatamente em que dia, pouco depois das demissões, soubemos que soldados do Exército começavam a queimar os livros dos professores e da Biblioteca da UnB [Universidade de Brasíla]. Nossa mãe, Othília, uma funcionária pública disciplinada e exemplar, sempre corajosa e dissimulada em situações adversas, pegou os quatro filhos e alguns lençóis e rumamos de carro para a universidade”, lembra no livro Sônia Pompeu, filha do jornalista Pompeu de Sousa, criador do curso de jornalismo da Universidade de Brasília. Segundo Sônia, dona Othilia “conseguiu enganar os militares que cercavam a UnB, alegando que precisava buscar umas roupas da família que estavam na lavanderia que prestava serviço aos professores.”

Para o arquiteto Márcio Vianna, o outro organizador de 1964 – Eu Era Criança e Vivi, os primeiros anos da ditadura acabaram por politizar quem ainda estava na infância ou no início da adolescência e ensinar sobre perseguição e despiste. Segundo Vianna leu e ouviu nos depoimentos coletados, as pessoas começaram “a se sentir de esquerda ainda na infância, pelas coisas que viam, que presenciavam nas famílias e pelo que sabiam sobre os problemas do país.”

A memória política do arquiteto também se estende às aulas de português. “Metáfora… é quando a gente quer falar uma coisa e não pode, como agora nestes tempos, e tem que dizer a mesma coisa, mas de outro jeito, um jeito poético, e só entende quem gosta de poesia, e… e quem não pode saber o que o poeta está dizendo, afinal nem entende, pois a poesia é uma espécie de código que só entende quem tem poesia dentro de si”, cita no livro, lembrando da professora, que era freira dominicana e “dava exemplos, geralmente usando as letras de músicas que dizia serem músicas de protesto.”

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